terça-feira, novembro 22, 2005

OS ESTIGMAS E SEUS PERIGOSOS EFEITOS

Todos sabemos as consequências dos estigmas: humilham, rotulam e quase sempre fazem os seus alvos passarem por situações complicadas e, às vezes, bizarras. Foi o que aconteceu com uma amiga minha. Olhem só em que "fria" a menina se meteu:
Trabalhando em uma autarquia federal, essa pessoa teve que ser transferida de Recife para o Rio de Janeiro (ai, que inveja!) por força das circunstâncias, já que o seu noivo, agora marido, morava na Cidade Maravilhosa e não tinha como se mudar pra cá. Acontece que a dita cuja morava aqui, mas era natural de uma cidadezinha do interior da Paraíba, o que tornava o seu sotaque nordestino ainda mais arrastado e inconfundível.
No primeiro dia de trabalho na nova cidade, ainda muito reticente quanto à aceitação da mudança radical em sua vida e muuuuuuuuuuuuuito insegura em andar sozinha, não só por não conhecer a cidade, como, também, pelas incontáveis histórias de violência urbana que sabia acontecerem cotidianamente ali, lá foi ela, se investindo de coragem, pegar o ônibus que a levaria ao local de trabalho, não sem antes ter repassado várias vezes o itinerário, incluindo o número do coletivo, a rua em que deveria apanhá-lo, etc... exaustivamente explicado pelo maridão, que estaria viajando justamente nesse dia, razão porque não poderia acompanhá-la.
Filha única de uma viúva de quem jamais se afastara em toda a sua vida, havia levado pra morar consigo a sua mãe que, vendo a angústia da filha em enfrentar o novo desafio, ficou em casa, rezando e zelando para que nada de mal lhe acontecesse ... um verdadeiro drama, aquele primeiro dia!
Já dentro do ônibus e sentindo-se um pouco mais aliviada, pensou consigo: "Até aqui, ajudou-me o Senhor!". À medida em que a condução ia ficando superlotada e as pessoas iam se comprimindo mais e mais, ela começou a sentir-se incomodada pela proximidade de um passageiro que, dividindo consigo um pequeno espaço na trave de apoio, no interior do ônibus, onde só cabia uma das mãos (porque não haviam conseguido lugares sentados, como tantos outros), roçava o seu braço no dela, o que a fez "olhar de banda", com a cara mais amarrada que o mal-estar lhe permitia. Foi então que aconteceu o que ela tanto temia: Ao dirigir o olhar àquele incômodo braço (que, segundo ela, mais parecia uma coxa, tão grandalhão era), viu uma coisa que a fez tremer nas bases e a encheu de fúria: Ali, no pulso do brutamontes, vislumbrou o seu lindo e amado relógio de ouro, presente de casamento do seu apaixonado marido! Ah, não! Isso não poderia ficar assim! Jamais iria permitir que aquele descarado meliante saísse dali, impune, levando o seu bem mais precioso, enquanto ainda se dava ao desplante de exibí-lo, como que a desafiá-la a protestar!
Sem pensar duas vezes, aproximou-se ainda mais do cara (um negão de quase dois metros de altura e uns 95 quilos, em contraponto ao seu 1,5m. de altura e quarenta e cinco quilos) e lhe disse, baixinho, com um sotaque mais carregado do que os de personagens nordestinos de novelas globais: "Olhe aqui, seu fí de rapariga, seu puto, eu não estou brincando, não! Passe pra cá o relógio, discretamente, se não você vai ver o que é que vai lhe acontecer! Você não sabe quem sou eu ... se você não fizer o que eu digo, vai haver um escândalo neste ônibus, que ninguém jamais viu ... e tem mais: eu sou da Paraíba! Não brinque comigo não!
Ato contínuo, o negão tirou o relógio do pulso e entregou-o à minha amiga, apressando-se em descer na próxima parada e sumiu, no meio da multidão, olhando pra trás, apavorado.
Depois do expediente na repartição, aonde conheceu os novos colegas, que lhe deram as boas vindas, deixando-a completamente à vontade (como é praxe nos cariocas), volta ela pra casa e, assim que vai entrando, vai logo contando pra a sua mãe como foi o seu dia, incluindo no relato o ocorrido no ônibus. Quando acaba a narração, sua mãe lhe olha, espantada, dizendo: "Mas, minha filha, você esqueceu o seu relógio no criado-mudo! Foi a primeira coisa que notei ao arrumar o seu quarto!" E, ela, com as duas mãos na cabeça, horrorizada, constatou a terrível verdade: "Mamãe, eu roubei um homem no meu primeiro dia de trabalho! Logo eu, que tanto temia ser vítima da violência do Rio de Janeiro!!! ... e caiu num convulsivo e desesperado choro.
Esta história é um exemplo do que pode fazer um estigma. É proverbial no Brasil o uso da peixeira pelos nordestinos, daí porque o infeliz negão, não só entregou o seu relógio de ouro àquela baixinha invocada, como, ainda, saiu correndo do ônibus, temendo pela própria vida ante suas ameaças.
Do mesmo modo, o rótulo de cidade violenta atribuído ao Rio de Janeiro fez com que uma decente funcionária pública, recém-chegada à cidade, corresse o risco de ser presa por assalto, pra dizer o mínimo, no seu primeiro dia de trânsito numa metrópole. É mole?