segunda-feira, novembro 28, 2005

LITERATURA DE CORDEL

Desde menina aprendí a apreciar a poesia matuta, cantada e declamada ao som de pandeiros e violas, na Feira de Caruaru. Lembro duma surra memorável que tomei do meu pai, por ter ficado horas a fio na calçada da Catedral de N.Srª das Dores, depois da missa, onde deparei com uma dupla de emboladores que, apesar de analfabetos, discorriam sobre personagens da história com uma sabedoria impressionante, fazendo-me esquecer do tempo e, naturalmente, perder a hora estabelecida pra chegar em casa.

Das histórias de cordel, uma das mais criativas que conheço é esta:


Nos tempos da fatídica ditadura militar, havia, lá pras bandas do Agreste pernambucano, um Tenente da Polícia, truculento e irascível, por isso mesmo temido por qualquer um que tivesse um pouco de amor à vida, que, seguindo as ordens do comando, perseguia todo aquele que, fosse qual fosse o motivo, reunisse mais de três pessoas ao seu redor em via pública ... atitude suspeitíssima de subversão da ordem, é claro!

Ocorre que um repentista da cidade, conhecido pela sua verve bem-humorada e rima fácil, gozador inveterado, divertia-se em infernizar a vida do tal tenente, razão porque acostumara-se a ser preso quase que semanalmente, pois não perdia qualquer chance de desafiá-lo, sempre reunindo em torno de si grande número de espectadores, ávidos por assistirem as rotineiras contendas entre caça e caçador.

Num desses dias, um sábado, quando havia mais gente na rua, em virtude da feira, que trazia muitos habitantes da região àquele pólo comercial, estava o poeta a agradar a sua platéia, pandeiro na mão, a glosar motes sugeridos pelo povo, quando o temível tenente se aproxima. Cassetete na mão, afugentando os presentes e gritando impropérios mil, assoma à roda, quando o cantador solta o seguinte verso:

"VAI CHEGANDO UM CIDADÃO, UM HOMEM MUITO DECENTE ...
QUERIA VER MAIS UM GALÃO NOS OMBROS DESSE TENENTE".

De nada adiantou a tentativa de "ganhar" o sujeito na conversa, elogiando-o ...
O tenente investiu contra o poeta, aos gritos: " Não me venha com essa onda de elogio pra me enrolar, não, cabra! Junte seus troços aí e TEJE PRESO!"
Arrumando o material na mala, o repentista o seguiu, obediente e resignadamente, mas antes soltou o resto do verso:

"O GALÃO QUE EU TÔ FALANDO É UM GALÃO DIFERENTE:
É UM GALÃO COM DUAS LATAS: UMA ATRÁS, OUTRA NA FRENTE!"

Pra quem não sabe, aqui no Nordeste, em tempos de seca braba, o pessoal carrega água das bicas num "galão", que consiste em um cilindro de madeira (um cabo de vassoura, por exemplo), por sobre os ombros, com duas latas (uma em cada extremidade).