segunda-feira, outubro 06, 2008

MEU PAI - UM PSICÓLOGO ÁS AVESSAS?

Hoje é segunda-feira, o "dia das almas", segundo não sei quem. Aprendí isso na minha infância mas, como tudo o mais que se nos ensinavam, ninguém jamais explicava a origem das crendices e, assim, as crianças assimilavam as informações sem questioná-las, pra não complicar a vida dos pais. Só muito mais tarde comecei a usar minha própria lógica pra compreender as coisas ao meu redor, porque o que os pais diziam, fosse o que fosse, era uma verdade absoluta (O que o meu pai dizia, então, nem se fala!).



Lí no post da Ane Brasil sobre casas mal-assombradas cuja existência povoava as fantasias infantis do nosso tempo, o que me trouxe à lembrança as então apavorantes noites de segunda-feira dos meus idos de menina, num tempo em que não havia TV e meu pai costumava reunir sua prole ao redor da enorme e pesada mesa da nossa sala de jantar para ouvir o rádio, contar "histórias de trancoso", ler contos, poesias e folhetos de cordel, após tomar as nossas lições de casa.

Para cada noite havia uma programação diferente, logo depois do terço, que ele rezava junto conosco e os seus "socorridos" (pessoas que ele abrigava numa vila construída com suas próprias mãos, retirantes da seca do sertão em busca de sobrevida no agreste, região mais próspera, então), mas nas segundas-feiras o tema era, sempre, o MAL-ASSOMBRO, que a gente adorava porque havia todo um ritual para ter início: Primeiro, sintonizava-se a RÁDIO DIFUSORA DE CARUARU ( hoje extinta e substituída por um Shopping Center), cujo programa principal tinha o sugestivo nome de "ASSOMBRAÇÃO, MISTÉRIOS DOS MORTOS", onde eram narrados contos os mais tenebrosos. O locutor começava dizendo: "APAGUEM AS LUZES (e o meu pai as apagava!) porque vai começar ... (vinheta sonora apavorante,, com direito àquela característica gargalhada gutural, no final) ASSOMBRAÇÃO, MISTÉRIOS DOS MORTOS!!!". A gente começava ouvindo, cada um, sentadinho na sua cadeira mas, no final, quando as luzes se acendiam, estávamos todos agarradinhos um ao outro e todos no seu colo ou pendurados nele, num cantinho da sala, no chão ... Ai, ai! Ô sodade, sô!

O curioso é que essa verdadeira tortura semanal não deixou qualquer marca em nenhum de nós e, hoje, ninguém na família é estressado com o tema ou tem medo de escuro. Mesmo naquela época, eu me levantava pra ir ao banheiro, madrugada a fora, sem acender as luzes, pra não acordar os outros e sem um pingo sequer de medo de "alma do outro mundo" que viesse me apavorar. E olha que o banheiro de casa era lá no fundo de um quilométrico quintal!

Essa "psicologia às avessas" parece ter, de alguma forma, contribuído para o nosso destemor ante o desconhecido mundo do além. Fosse hoje, o meu pobre pai estaria nas malhas da justiça, com o DPCA (Departamento de Proteção à Criança e ao Adolescente) na sua cola.

Se vivo estivesse, teria completado, no último dia 01 de outubro, 102 anos. A ele devo tudo o que sou, principalmente a minha paixão pelas letras. Com ele aprendí não só a ler, como a gostar de ler e escrever e, principalmente, a amar a Deus sobre todas as coisas. "Naquela mesa" ele não só contava histórias, como as inventava; "Naquela mesa" ele lia "ZÉ LIMEIRA, O POETA DO ABSURDO"; GRACILIANO RAMOS; ÉRICO VERÍSSIMO; JOSÉ DE ALENCAR; OLAVO BILAC; AGOSTINHO DOS ANJOS; GILBERTO FREYRE; GUIMARÃES ROSA e tantos outros ... Mas o que eu mais gostava era o livro "BRASIL CABOCLO", do escritor ZÉ DA LUZ, cheio de poesia matuta, de conteúdo ora pungente, ora engraçado, que começava assim:

" O qui é Brasí Caboco?
É um Brasi diferente
do Brasí das capitá.
É um Brasi brasilêro,
sem mistura de instrangero,
um Brasi nacioná"!



E terminava assim:

"É o Brasi das caboca,
qui de noite se dibruça,
machucando o peito virge
no batente das jinela...
Vendo os caboco pachola
qui geme, chora e soluça
nas cordas de uma viola,
ruendo paxão pru ela!


É esse o Brasi caboco.
Um Brasi bem brasilero,
sem mistura de instrangêro
Um Brasí nacioná!


Brasi, qui foi, eu tô certo
argum dia discuberto,
pru Pêdo Arves Cabrá".



Meu pai, JÚLIO SIMÕES DE OLIVEIRA, na sua simplicidade, foi o homem mais perfeito que Deus, um dia criou. A única pessoa, em carne e osso, que eu conhecí, capaz de amar a humanidade inteira com a mesma intensidade; que viveu para os pobres e para Deus, aplicando à sua vida os Seus ensinamentos integralmente. Que, ao morrer, deixou um legado de honradez, honestidade e nobreza de caráter hoje quase extintos. Sua obra concreta em favor dos excluídos até hoje perdura: Uma vila de casinhas, com uma capela (que tem o seu nome), na qual ainda moram famílias que não podem pagar aluguel. Foi um santo em vida (já existem relatos de pessoas que lhe fazem promessas e as alcançam) e espero que o seja, também, pós-morte - O meu irmão costuma dizer que "Se pai não estiver no céu, eu tô lascado!"- Eu digo o mesmo.

Nunca tive a chance de lhe dizer o quanto o amava e admirava pois, como homem rude e sofrido, não era com afagos e beijos que demonstrava o seu carinho para conosco, embora nenhum de nós, hoje, tenha qualquer dúvida do quanto ele nos amou. Aproveito, agora, para encher o peito e gritar: PAI, EU TE AMO!

ABENÇA, PAI!!!